Conivência Digital e Infância Violada
Artigo publicado no jornal diário de Santa Maria dia 26/08/2025
Márcio Medeiros
8/28/20252 min read


Recentemente, o youtuber Felca trouxe a público uma denúncia contundente a respeito do fenômeno da adultização infantil nas plataformas de redes sociais. Embora o tema tenha ganhado espaço na grande mídia e, por conseguinte, no debate legislativo, a maneira como vem sendo encaminhado revela-se, a meu ver, profundamente equivocada.
Do ponto de vista jurídico, o Brasil já dispõe de um instrumento normativo robusto para a proteção integral da criança e do adolescente: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse diploma legal já criminaliza, em grande medida, as condutas apontadas no vídeo em questão. Assim, a proposição de novas leis sobre o tema, ao invés de representar um avanço substantivo, parece configurar mais uma manobra de capitalização política e autopromoção eleitoral, aproveitando-se da comoção pública gerada pelo caso.
Chega-se, então, a um ponto nevrálgico do problema: como explicar que figuras como Hytalo Santos — influencer cujas ações, ao que tudo indica, violaram de forma reiterada dispositivos do ECA, e que produziu e divulgou tais condutas publicamente — não tenham sido alvo de indiciamento ou prisão antes? Tal omissão revela uma grave falha estrutural nos mecanismos de fiscalização e repressão de crimes de abuso infantil nas redes. O enfrentamento dessa chaga social exigiria maior investimento em equipes especializadas, tecnologias de detecção e políticas proativas voltadas ao combate de abusos, exploração sexual e redes de pedofilia no ambiente digital.
Outro aspecto crucial reside na conduta negligente das próprias plataformas digitais. O vídeo de Felca evidencia como as redes sociais não apenas toleram, mas em certa medida facilitam e potencializam circuitos de exploração sexual infantil. Um exemplo alarmante: ao criar um perfil e interagir com poucas imagens de crianças em trajes sumários, o algoritmo do Instagram passa a recomendar sistematicamente conteúdos semelhantes, criando um ambiente que serve, de forma quase instantânea, às buscas de potenciais abusadores. Soma-se a isso a permanência, por longos períodos, de comentários com conotação sexual em páginas de crianças, que seriam facilmente detectáveis por sistemas de moderação mais rigorosos.
Dessa forma, o quadro exposto combina dois vetores: (1) a ineficiência estatal na investigação e punição célere desses crimes e (2) a conivência algorítmica e administrativa das plataformas, que priorizam o engajamento a qualquer custo. Contudo, o debate público, de modo enviesado, vem deslocando a responsabilidade quase que exclusivamente para o âmbito doméstico, sustentando que a única proteção eficaz está na cautela das famílias quanto ao que postam na internet. É evidente que o núcleo familiar possui parcela de responsabilidade; todavia, esta é necessariamente compartilhada com o Estado — por meio de seus órgãos de proteção e repressão — e com as empresas que administram as redes sociais.
Politizar adequadamente o tema significa, pois, deslocar o foco do moralismo punitivo individual para a responsabilização sistêmica, cobrando do poder público investigações mais amplas e eficientes, e exigindo marcos regulatórios que atribuam às plataformas a responsabilidade legal sobre os conteúdos que elas hospedam, recomendam e monetizam. Apenas assim se poderá enfrentar de forma consequente a adultização infantil e a exploração que dela decorre.