O Dilema dos Laudos
Artigo publicado no jornal Diários de Santa Maria no dia 06/05
Marcio Medeiros
5/8/20252 min read


Nas últimas décadas, tem-se intensificado um amplo debate público acerca da patologização dos estados mentais, especialmente após a ampliação do número de laudos relativos ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). O que me causa especial incômodo nesse debate não é apenas a crescente polarização, mas, sobretudo, a forma reducionista como as posições têm sido formuladas: de um lado, observa-se uma perspectiva que naturaliza a ampliação dos diagnósticos, tratando-a como um fenômeno incontestável; de outro, encontra-se uma corrente que, com ceticismo, tende a deslegitimar a própria existência dos transtornos em questão. Ambas as posturas são prejudiciais à análise séria e ponderada da situação.
É inegável que há, de fato, uma expansão significativa nos diagnósticos. Tal fenômeno pode ser atribuído, em grande medida, à modificação dos critérios diagnósticos — especialmente a partir das sucessivas edições do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) — e à ampla circulação de informações na sociedade contemporânea, potencializada pela internet e pelas redes sociais. Na década de 1990, por exemplo, muitos indivíduos que, durante a infância e adolescência, eram apenas considerados "excêntricos" ou "inadaptados", vieram a descobrir na vida adulta diagnósticos de TEA ou TDAH. Portanto, o argumento de que a informação e o avanço nos instrumentos de avaliação têm permitido maior reconhecimento de transtornos do neurodesenvolvimento é legítimo e merece consideração.
Todavia, não se pode ignorar a existência de outro fenômeno concomitante: a tendência à rotulação precipitada de comportamentos que, embora desafiadores no contexto escolar — como dificuldades em permanecer sentado, em regular as emoções ou em acompanhar o ritmo acadêmico —, não necessariamente configuram um quadro clínico de neurodivergência. A preocupação em investigar possíveis condições neuropsiquiátricas é legítima, especialmente quando orientada pelo zelo para com o bem-estar da criança. No entanto, o uso imprudente de laudos como instrumentos de gestão de comportamentos "incômodos" revela uma lógica patologizante do diferente, na qual dificuldades de ordem socioemocional, muitas vezes ligadas a contextos de negligência familiar, ausência de diálogo ou experiências traumáticas, são medicalizadas sem a devida reflexão crítica.
Importa destacar que o reconhecimento da existência de um processo de patologização do comportamento divergente não invalida a legitimidade dos diagnósticos verdadeiros. Da mesma maneira, o aumento da conscientização e da busca por acompanhamento psicológico não exime a necessidade de problematizar o excesso de medicalização e os riscos inerentes à rotulação indevida. Em suma, falta equilíbrio a um debate que deveria ser conduzido com a máxima seriedade, dado o impacto profundo que um diagnóstico pode ter sobre a trajetória subjetiva e social de um indivíduo.
Por fim, cumpre ressaltar a responsabilidade ética dos profissionais de saúde e educação, que devem exercer constante vigilância crítica para evitar tanto a negligência diante de quadros genuínos quanto a imprudência de identificar patologias onde elas, de fato, não existem. A construção de uma cultura de discernimento, mais do que de juízos apressados, é imprescindível para que possamos avançar para uma sociedade verdadeiramente inclusiva e respeitosa das diferenças humanas.