Resposta completa a entrevista publicada no dia 5 de outubro de 2024
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Perguntas feitas por Claudiane Weber
2/26/20258 min read


Perguntas: Márcio de Medeiros, doutor em sociologia
- Muito se fala sobre polarização na atualidade, mas pode-se dizer que a origem desse conceito é tão antigo quanto a humanidade, no contexto e que os indivíduos começaram a formar grupos para sobreviver e em consequência disputar com rivais?
A polarização social, de fato, é um fenômeno antigo que remonta às origens da humanidade, quando os seres humanos, assim como outros primatas, começaram a formar grupos como estratégia de sobrevivência. Esses grupos frequentemente competiam entre si por recursos e território, criando rivalidades que podiam gerar conflitos. No entanto, embora essa tendência de formação de grupos e rivalização seja ancestral, o cenário contemporâneo apresenta novos fatores que intensificam essa dinâmica.
Com o advento da internet e o surgimento das redes sociais, a polarização adquiriu uma nova dimensão. A formação de grupos agora ocorre em um ambiente virtual, transcende fronteiras geográficas e alcança um número muito maior de indivíduos. As redes sociais, por sua natureza, funcionam como plataformas que não apenas facilitam essa formação de grupos, mas também amplificam os conflitos, pois tendem a promover interações que mantêm os usuários engajados por mais tempo. Como esses ambientes digitais operam sob lógicas comerciais que lucram com o tempo que os usuários passam conectados, há um incentivo estrutural para o conflito. Quanto mais intenso o debate, mais tempo as pessoas permanecem online, o que contribui para o aumento da animosidade entre os grupos.
Por isso, o debate sobre polarização na atualidade tem se tornado mais proeminente. A intensidade com que presenciamos essa divisão e a rapidez com que ela se propaga em redes digitais são significativamente maiores do que em épocas anteriores. Dessa forma, o contexto atual potencializa um fenômeno social antigo, elevando-o a níveis antes não.
- Com o avanço da civilização, a humanidade foi organizando sistemas de poder, onde a violência instintiva foi ficando para trás, mas as disputas não. Com a democracia, chega ao poder quem convence mais pessoas através do voto. Para isso, a estratégia de alguns é o ataque mútuo, entre “adoradores” e os próprios candidatos, muitas vezes. Teria uma explicação sociológica para essa “paixão avassaladora” por pessoas tidas como ídolos ou pelas ideias que esses promovem?
A política, enquanto arena de conflito controlado, opera dentro de regras que buscam canalizar os impulsos violentos e instintivos para o campo discursivo e deliberativo. Na democracia, em particular, o processo eleitoral oferece um espaço no qual o poder é disputado através da persuasão e convencimento. No entanto, a "paixão avassaladora" por determinadas figuras políticas ou ideologias pode ser explicada sociologicamente através de diversos mecanismos.
Primeiramente, a teoria da projeção, que é um conceito freudiano, nos ajuda a entender como os eleitores depositam suas esperanças, medos e desejos nas figuras políticas, transformando-as em símbolos de suas próprias aspirações. Os líderes políticos se tornam, então, figuras que transcendem sua própria individualidade e passam a representar um conjunto de expectativas sociais. Max Weber também discute esse fenômeno ao abordar a dominação carismática, onde o líder político é visto como dotado de qualidades extraordinárias, elevando-o ao status de quase ídolo, capaz de mobilizar seguidores com uma devoção que transcende a racionalidade.
Além disso, a construção de ídolos políticos está profundamente ligada à criação de símbolos que ressoam com o contexto social, econômico e cultural. Esses líderes são, em última instância, "produtos sociais" que refletem as tensões, anseios e divisões da sociedade. Pierre Bourdieu complementa essa visão ao destacar o papel do habitus e das estruturas simbólicas, que moldam as formas como os indivíduos percebem e se conectam com o campo político. A figura do líder político é, assim, uma construção simbólica que carrega em si os conflitos, acordos e desacordos de um dado contexto histórico.
Por fim, o comportamento de adoração intensa pode ser também explicado pelo fenômeno da identidade social, teorizado por Henri Tajfel, onde os indivíduos se identificam fortemente com um grupo, seja em torno de uma ideia ou de uma figura política, e passam a construir uma identidade coletiva baseada nessa adesão. Esse processo de identificação gera a polarização entre “nós” e “eles”, incentivando ataques e defesas apaixonadas por parte de eleitores.
- Junto da polarização, vem o extremismo, quando radicais opostos se tornam adversários/inimigos. Muitas vezes não é possível dialogar nem dentro da própria casa, levando a brigas familiares e entre amizades de longa data. Porque o ser humano colocaria ideais e ídolos à frente de pessoas e relações queridas?
A dificuldade de diálogo e o aumento da polarização, levando ao extremismo, podem ser compreendidos sociologicamente a partir de diversos fatores. Um dos principais é o fenômeno da disonância cognitiva formulado por Festinger, que ocorre quando as pessoas enfrentam informações ou opiniões que contradizem suas crenças pré-existentes. Para reduzir o desconforto causado por essa dissonância, elas tendem a evitar confrontar suas próprias visões e se fecham ao diálogo com aqueles que pensam de forma diferente. Esse processo psicológico pode explicar por que, em muitos casos, a comunicação genuína entre pessoas próximas, como familiares e amigos, torna-se rara.
Além disso, a influência das bolhas informacionais e o fenômeno da câmara de eco nas redes sociais intensificam essa dinâmica. As pessoas passam a consumir informações que confirmam suas visões de mundo, reforçando suas crenças em ideais e ídolos e diminuindo a disposição para ouvir opiniões divergentes. As redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, operam sob algoritmos que priorizam conteúdos que geram mais engajamento, o que muitas vezes significa incentivar a exposição a discursos polarizadores e extremistas. Assim, os indivíduos ficam imersos em ambientes onde suas crenças são validadas, e quaisquer visões opostas são percebidas como ameaças.
Esse contexto também pode ser explicado a partir da teoria da identidade social. À medida que as pessoas se identificam fortemente com um grupo político ou ideológico, elas internalizam os valores e as crenças desse grupo como parte de sua própria identidade. Quando confrontadas com opiniões contrárias, elas percebem essas divergências não apenas como ataques a uma ideia, mas como ataques à sua própria identidade e, consequentemente, à do grupo a que pertencem. Isso resulta na escalada de conflitos e na priorização dos ídolos e ideais que representam suas convicções sobre os vínculos pessoais.
Adicionalmente, os líderes políticos ou ideológicos tornam-se símbolos de projeções pessoais e coletivas. Eles canalizam os anseios, medos e expectativas dos seus seguidores, muitas vezes ganhando um status quase mitológico. Quando esses líderes ou ídolos políticos são desafiados, seus seguidores podem interpretar essa oposição como uma ameaça ao próprio sentido de pertencimento e estabilidade, exacerbando a polarização e colocando esses símbolos acima de relações interpessoais.
- Outro ponto é o ambiente online, onde a tecnologia, seja pela disseminação de fake news ou pela justificativa da “liberdade de expressão”, ou mesmo, de um perfil (oculto) é utilizada erroneamente para ofender e incentivar ainda mais ódio. Nessas situações, ao que atribui essas atitudes nas pessoas?
A proliferação de fake news e o uso inadequado da tecnologia para disseminar ódio e ofensas no ambiente online podem ser atribuídos a uma série de fatores sociais e psicológicos. Em primeiro lugar, a dificuldade das pessoas em verificar a veracidade das informações se deve, em parte, à sobrecarga de dados e à incapacidade de filtrar de forma eficaz o que é verdadeiro do que é manipulado. As fake news são propositalmente construídas para manipular percepções, explorando vieses cognitivos e emocionais dos indivíduos. Essas notícias falsas, ao serem direcionadas a públicos-alvo específicos, conseguem manipular suas crenças e comportamentos ao reforçarem preconceitos já existentes, promovendo uma visão distorcida da realidade.
Outro fator central é o uso da tecnologia de coleta de dados e a segmentação comportamental, como visto no escândalo da Cambridge Analytica. Essa empresa foi capaz de explorar informações pessoais de milhões de usuários para criar perfis psicológicos detalhados e, assim, direcionar fake news e conteúdos manipuladores que reforçassem o engajamento político ou emocional. Essa estratégia permitiu que grupos políticos ou econômicos utilizassem o ambiente digital como uma ferramenta poderosa de manipulação em massa, moldando o comportamento e as opiniões de grandes parcelas da população.
Além disso, o anonimato e a noção de “liberdade de expressão” frequentemente distorcida no ambiente online contribuem para um comportamento mais agressivo. O anonimato reduz a percepção de responsabilidade e as inibições morais, levando as pessoas a expressarem opiniões ofensivas ou violentas com menos medo de repercussões sociais ou legais. Quando somado ao fenômeno das câmaras de eco, no qual as pessoas estão cercadas por informações que confirmam suas crenças, o ambiente online se torna propício para a disseminação de ódio e polarização.
Em suma, as atitudes das pessoas em ambientes online, que incluem a disseminação de fake news e discursos de ódio, podem ser atribuídas à combinação de manipulação informacional, uso estratégico de dados pessoais e a dissolução das normas sociais que ocorre no anonimato e na virtualidade.
- Alguma outra consideração importante a destacar para entendermos melhor em como se dá essa polarização?
Atualmente, diversos fatores sociais alimentam a polarização social. O descontentamento político, as desigualdades sociais, preconceitos, violência e frustrações são amplamente explorados e organizados por grupos polarizados. Esses grupos capitalizam os discursos em torno desses problemas, oferecendo narrativas que parecem dar sentido ao caos informacional contemporâneo, mas que frequentemente incluem a disseminação de informações falsas (fake news), com o objetivo de manipular percepções e intensificar divisões.
A polarização contemporânea é, assim, um fenômeno multifacetado que combina manipulação informacional, agravamento de problemas sociais e o crescente descrédito nas instituições políticas tradicionais. À medida que as pessoas perdem a confiança em mecanismos tradicionais de mediação, como a política institucional, passam a se alinhar com grupos que oferecem soluções simplistas ou radicais para problemas complexos. Esses grupos exploram a insatisfação generalizada, transformando-a em combustível para narrativas polarizadas e extremistas.
Outro ponto importante é que a polarização não se limita ao campo político; ela penetra nas relações sociais e nas esferas culturais, amplificando antagonismos em questões como identidade, raça, gênero e classe. Esse fenômeno reflete um processo de tribalização, no qual os indivíduos, ao invés de buscar consensos, se agrupam em bolhas de afinidade que reforçam suas próprias visões e hostilizam aqueles que pensam de forma diferente.
Essa polarização crescente é um sintoma preocupante do estado atual da sociedade e pode gerar consequências políticas sérias. Em longo prazo, o enfraquecimento do diálogo democrático e a radicalização das posições podem levar à erosão das instituições políticas, comprometendo a estabilidade democrática e a governança efetiva. Portanto, a polarização que vivenciamos atualmente não é apenas uma questão de opinião divergente, mas um reflexo profundo das tensões sociais que, se não forem enfrentadas, poderão desestabilizar as estruturas fundamentais da sociedade.